segunda-feira, 7 de abril de 2008

Exercícios de Ser Criança

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para
mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que
do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar
água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge
ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando
ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!


Manoel de Barros ganhou dois prêmios em 1996 relativos ao livro Exercícios de Ser Criança: Prêmio Odilo Costa Filho - Fundação do Livro Infanto Juvenil e Prêmio da Academia Brasileira de Letras.
P.S. Acho que amo tanto assim o Manoel, porque só ele consegue resgatar a menininha que eu fui: fantasiosa, falante e - como talvez ele diria- muito inventadeira de estórias.

domingo, 6 de abril de 2008

Livro Sobre o Nada

Fragmentos:

"Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.

Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.

A inércia é o meu ato principal.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Por pudor sou impuro.

Não preciso do fim para chegar.

De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra — Como um lápis numa península.

Do lugar onde estou já fui embora."
Como não se apaixonar perdidamente? O Manoel é surpeendente e totalmente subversivo em todos os sentidos: linguísticos e amorosos.

Manoel de Barros

Tenho postado alguns fragmentos do extraordinário Manoel de Barros, que para mim e outros tantos, é um dos maiores poetas brasileiros. O conheci alguns anos atrás em entrevista a Caros Amigos. Foi uma paixão à primeira lida.

Manoel, poeta e fazendeiro mato-grossense, nasceu em 1916 e teve seu primeiro livro publicado em 1937 - Poemas concebidos sem pecado. Passou a ser mais conhecido a partir do ano de 1997, quando ganhou o prêmio Nestlé de Literatura. De seu "Livro sobre Nada", Editora Record - Rio de Janeiro,1997

A linguagem do Manoel é absurdamente simples, poética e inesperada. E simplicidade não é algo fácil, é um exercício complexo de desapego de vaidades ou como ele mesmo em entrevista ao jornalista Bosco Martins para Caros Amigos definiu tão bem: “Tudo o que eu aprendera até meus noventa anos era nada; meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vem de minhas percepções infantis”. Outra frase sua que adoro, diz: “desaprender oito horas por dia ensina os princípios..”( Livro das ingnorãças)